A reflexão sobre a merda
Certa vez ouvi o meu vizinho gritar:
Vai à merda!
Ele gritava com um cobrador de impostos. Interessante como alguns minutos antes ele o recebia com um sorriso largo de quem recebia um irmão em sua casa, porém, no momento que o cobrador se apresentou, ele começou a mudar, primeiro deu um sorriso constrangido e se mostrou um tanto incomodado, depois disse que não tinha como pagá-lo naquele momento e finalmente perdeu sua aparente serenidade mandando-o à merda. Aquilo me fez refletir:
UM
Ontem acordei cedo, escovei meus dentes, tomei um banho, a água estava uma delícia, não queria sair dali tão cedo, mas estava atrasado para o trabalho, tomei meu café, bem simples, pão, manteiga e café, o dia estava lindo, o sol aparecia pela minha janela refletindo nos pisos de madeira da minha casa, hoje seria o dia.
Cheguei no trabalho, aos poucos cada um chegava, trabalho no Colégio Pedro Lopes, sou professor de Literatura. Quando cheguei à sala de aula, pude perceber dois alunos que discutiam:
Você é um otário, ainda não percebeu que não se encaixa nessa sala? Vai pra lá Zé Mané...
Otário? Venha aqui que eu vou te mostrar quem é o otário seu filho da puta!
Por sorte, alguns alunos separaram os dois. Quem fazia chacotas era o Marquinho, ele não era um mau garoto, mas por ter tudo nas mãos, achava que podia tudo. O outro era o Fernando, menino esforçado, pobre, ganhou a bolsa naquele colégio graças a uma prova que havia feito, era bom para o colégio ter alunos inteligentes, seu nome crescia na rua.
Quando eles foram separados, o Marquinho ainda falou:
Seu vermezinho, isso não vai ficar assim.
E o Fernando retrucou:
Vai à merda.
Foi a primeira vez que o termo “merda” me chamou a atenção. Imediatamente os dois alunos foram encaminhados para a sala do S.O.E., e lá receberam suas punições. Enfim, minhas aulas foram dadas, saí do Pedro Lopes, me dirigi ao Modernista, e por fim ao Lucas Ribeiro – esse estadual. Diferente dos outros colégios, o Lucas Ribeiro era muito mal instalado. Era um antigo casebre sem manutenção há anos, no piso já se via a terra por onde aquela casa fora fundada, o telhado não tinha laje e algumas telhas estavam quebradas, quando chovia, era capaz de ver alguns alunos com seus guarda-chuvas abertos dentro da sala, quando havia alunos nas salas, era mais fácil encontrá-los na fila da merenda ou batendo papo na porta da sala, quase nunca entravam. Cheguei na sala 012, olhei os raros alunos na porta e falei:
Vamos?
Uma moça linda, magra, morena, cabelos presos empapados de creme, seus olhos vivos e lábios carnudos me disse:
Vai à merda!
Mais uma vez estou de frente ao clássico: “vai à merda”, e hoje escuto o meu vizinho mandar o seu cobrador de impostos à merda. Será que esse termo realmente é tão pesado quanto penso? Dei minha aula, hoje eu falava sobre o Romantismo. Era difícil dar aula para eles quando não queriam, mas o Romantismo conquistou essa sala, principalmente quando mencionei o pacto dos poetas românticos. Contava de uma forma teatral para eles:
Os poetas da segunda geraçao se reuniam num bar e faziam um pacto entre eles; escarravam num cálice de vinho e passavam pelo círculo com a finalidade de que todos bebessem do escarro. Todos deveriam beber, aquele que não bebesse era considerado um homem que não se podia confiar. Por isso, muitos deles morriam de tuberculose, uma doença incurável na época. - Novamente a menina que me mandou à merda fala:
Ai professor, que nojo, eu ia comer ainda... – todos caem na gargalhada, aproveito e chamo a sua atenção delicadamente:
E mandar as pessoas pra merda não é nojento? - Ela ficou muda e um pouco mais pálida de nervoso. – Não precisa ficar assim Cíntia, é que hoje presenciei essa frase algumas vezes, e queria colocá-la em discussão, o que acham?
Hã? – indagou um dos alunos no fundo da sala.
Mas mandar ir à merda é tão comum. – Cíntia enfim quebrara sua mudez de espanto – você pode escutar isso de mim ou na rua em qualquer briga.
Tem razão Cíntia, mas mandar ir à merda, se parar pra ver, faz todo o sentido, não é tão mal ouvir isso, o que acham? - Eu disse abrindo um largo sorriso percebendo as suas carinhas tão confusas e seus olhos me metralhando como que estivessem perguntando se estou louco.
Você Luiz, está aqui porque?
Porque minha mãe me colocou aqui!
Humm, tá, mas não é isso que eu pensei, alguém aqui pensa em fazer vestibular?
Eu! - Disse um menino gordinho, baixinho, possuía uma cicatriz no rosto do lado direito e um olhar sereno. Admirava muito esse menino, porque ele tinha coragem de peitar os professores nas horas corretas e de corrigi-los quando necessário.
Diga Almir!
Quero fazer Direito. – Todos riram e escuto um rapaz chamado Jailton falar:
Com esse colégio aqui, você no máximo vai ser boy!
Vai à merda! - disse Almir
E vai à merda mesmo! - falei percebendo que todos os olhos se voltavam para mim com um ar espantado, um professor falando que o aluno vai à merda. Absurdo! – Pensem; Almir quer estudar e ser alguém na vida, e vocês também, não importa a sua profissão, mas para que vamos trabalhar?
Pra ter dinheiro. – Disse mais um dos meus “inteligentíssimos” alunos.
Exato e sem dinheiro passamos...
Fome. – disse Leonardo da direita da sala.
Chegamos onde eu queria chegar. Trabalhamos para nos sustentar, para comer, compramos roupas, mas quem faz essas roupas ganham para comer também, quem faz as roupas compram linha, e quem faz as linhas ganham para comer e assim vai.
Que viagem – Disse Leandro. Sorri e completei:
E a comida no final vai virar...
MERDA! – Disse o coro de alunos da minha sala.
Saí da sala imaginando meu vizinho novamente gritando com o cobrador de impostos:
Vai à merda! - e o cobrador respondendo:
Estou trabalhando para isso!
Anderson Rabelo
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